
Isabel Marques
O lúpus, a dor, mas também a esperança
Chamo-me Isabel Marques vivo com lúpus há 18 anos, ou seja, a dor faz parte da minha vida, 24 horas por dia, há quase duas décadas. Mesmo assim sou uma pessoa feliz este é o meu testemunho na primeira pessoa, falo aqui o que tive que aprender com o lúpus e todo o meu processo de reconstrução individual, porque acredito que “um doente bem informado tem um papel muito interventivo junto dos médicos e da sua doença”. Continuarei enquanto conseguir continuar com as ações de sensibilização para que a sociedade perceba a realidade destes doentes.
A minha história
A dor faz parte da minha vida há 18 anos, 24 horas por dia, devido à minha doença autoimune – o lúpus – bem como à minha dor neuropática e à própria fibromialgia que me leva ao limite de todo o meu corpo – é uma sensação de queimaduras e agulhas nas extremidades, tenho dias que nem a roupa consigo aguentar no corpo, tenho uma fraqueza muscular muito grande, sem muitas vezes conseguir pegar num copo para beber água. Fala-se muito pouco da realidade destes doentes. Tive de estruturar toda a minha vida e deixar as duas áreas profissionais das quais era apaixonada: a Medicina Dentária – onde trabalhei 10 anos como assistente – e o trabalho com crianças de idade pré-escolar.
Não importa onde eu tive de parar, em que momento da minha vida me cansei. O que importa é que será sempre possível um novo renascer. São 18 anos a viver condicionada dentro de uma doença autoimune como o lúpus, que não se vê, mas sente-se. Tenho feito ao longo destes anos terapêuticas muito agressivas, como a quimioterapia, e o maior desafio da minha vida é que há 18 anos vivo 24 horas com dor permanente, ou seja, tive que me adaptar hoje ao meu desconforto diário que muitas das vezes me leva ao limite. Adoro o silêncio pois o mesmo para mim é reparador, hoje considero-me uma pessoa muito seletiva nas pessoas que eu quero que estejam presentes na minha vida pois quem sofre de dor diária isola-se do mundo que a rodeia.
Hoje considero-me uma pessoa mais informada sobre a minha doença e tenho um papel ativo na minha patologia, pois conheço muito bem todos os sinais que o meu corpo me dá quando tenho que parar, tenho uma relação muito boa com todos os médicos que me acompanham, que me têm ajudado a poder ter hoje um suporte de adaptação, informação e ajuda na minha forma como vejo a doença. Aprendi:
– A respeitar os sinais do meu corpo;
– Falar pode aliviar minhas dores emocionais;
– O que importa não é o que eu tenho na vida, mas quem eu tenho na vida;
– Não importa até onde eu chegue, mas para onde estou indo;
– Posso ir mais longe depois de pensar que não posso mais;
– O silêncio alivia a minha dor.
É por tudo isto que agradeço todos os dias ao meu mar, pois é com ele que tantas vezes eu grito, choro, desabafo e partilho. É a ele que vou buscar a força que preciso ter todos os dias para poder ultrapassar mais um novo desafio.
O maior desafio
O maior desafio de todos tem sido a depressão que tantas vezes é silenciada. Sei bem descrever o vazio pelo qual tenho passado. Os sacrifícios impostos pela doença agravam-se e desencadeiam sintomas e crises agudas. Tive momentos em que não conseguia pensar, pois as dores permanentes e as elevadas doses de medicamentos foram o caminho que nada me tem ajudado. O simples facto de ter sofrido, de ter tido graves incapacidades físicas e cognitivas associadas à fadiga, dores no corpo todo, vasculites cerebrais, perdas de apetite, tudo isto provocou demasiado stress e obrigou a consciencializar-me para esta nova realidade. Contrariar o meu corpo, para me levantar todos os dias, é por vezes um grande esforço e uma grande exigência física e mental.
No meu caso, o lúpus comprometeu o meu cérebro. Tenho momentos em que tudo muda de um minuto para o outro. O esquecimento, o querer exprimir-me e ficar confusa… por vezes, nem o meu nome consigo pronunciar. Gerir todas esta adversidade não é fácil. Tive de aceitar, acreditar, levar a vida com muita leveza e tentar sempre agarrar-me às conquistas positivas. Sorrir alivia a alma! E tenho muita sorte de ter médicos que entendem bem a complexidade de todo o meu diagnóstico e que me ajudam na forma de adaptação e informação para quem vive comigo.
Os tratamentos
Os tratamentos de quimioterapia foram e são o processo mais doloroso pelo qual tenho passado ao longo destes anos, pois, em surtos ativos, é a estes tratamentos que tenho de recorrer. Este tipo de tratamentos não é só para doentes oncológicos – esse é um desconhecimento de muitas pessoas. Devido à minha doença autoimune, tenho de recorrer a este tipo de tratamento injetável, em meio hospitalar, com uma duração de 4 horas cada tratamento, com ciclos de 6 sessões, de 3 em 3 semanas… Não é nada fácil!
A saúde é o nosso bem mais precioso. A sua ausência transforma por completo a nossa perceção do mundo e a forma como nos relacionamos com os outros. Por isso, digo muitas vezes que amanhã é um novo dia e a palavra esperança é a que tenho sempre gravada no coração. Vivo ao som das ondas e é o mar que me inspira e me embala todos os dias. Senti que ao recomeçar me permitia ter esperança para poder seguir em frente e renovar as minhas esperanças de vida. Uma coisa fui aprendendo ao longo destes anos: não queria ficar trancada na tristeza e na dor, queria alcançar os meus sonhos.
Foi difícil para mim fazer a mudança, sobretudo ir de encontro ao desconhecido, encontrei o meu caminho, decidi que me escolho, não irei mais contra as minhas vontades, vou prosseguir a minha jornada de vida, com altos e baixos, mas feliz por ter dado o primeiro passo para a felicidade. De salientar que na altura do diagnóstico eu nunca tinha ouvido falar do lúpus. A preocupação dos meus médicos era agir rapidamente, para que o meu organismo tivesse resposta ao tratamento, que por si só já era muito invasivo. Sabia sim que o meu corpo estava a ficar muito doente e a rapidez de ação iria, com toda a certeza, fazer a diferença para que me permitisse hoje contar a minha história.
O desenvolvimento da minha força, coragem e paz interior demorou muito tempo e os resultados nem sempre foram imediatos e nem sempre os que mais desejei. Ao longo de todo este processo de aceitação do meu lúpus, teve de partir de mim o que quis mudar, cada ação que fui executando, só assim foi possível, permitiu-me tomar as decisões certas. Hoje, vivo ao som das ondas, vou buscar ao mar a força para ultrapassar todos os obstáculos, o mar traz-me luz e serenidade, é o mar que me inspira e me embala e sobretudo é dentro da água fria do mar que o meu corpo adormece. São estratégias que tenho vindo a desenvolver ao longo deste tempo.
O meu caminho faz-se caminhando. Um dia sei que vou olhar para trás e ver que os degraus que tive de descer e subir foram os mesmos que me levaram à vitória. Sei que nada será como antes do diagnóstico, nada voltará ao que foi. Tive que arranjar formas de renascer e, sobretudo, de me readaptar, criar ferramentas de informação e conhecimento, para que hoje pudesse dar a conhecer a realidade do portador de lúpus.
Aprendi a festejar a vida e todos os dias tento focar-me nas minhas habilidades e não nas minhas incapacidades O meu lúpus tem incidência no sistema nervoso central e a doença está em progressão, porque afeta toda a parte neurológica. Apesar de tudo, sou uma pessoa feliz e tenho um orgulho enorme da minha família e de tudo o que temos conseguido construir. Enquanto puder e conseguir continuarei a fazer ações de sensibilização, porque acredito que só dando a informação as pessoas podem adquirir o conhecimento. Acredito que um doente bem informado tem um papel muito interventivo junto dos médicos e da sua doença. Acredito em mim hoje e sempre! As minhas pequenas conquistas são para mim grandes vitórias. Faço questão de todos os dias abraçar a vida.
Nota: Fotos de Varvara Berdianu, também ela portadora de uma doença rara.
Julho 2023