
Drª Susana Magalhães
Medicina Narrativa
Ética em Pesquisa e Integridade em Pesquisa
Educação em Bioética: Utilizando textos literários no ensino/pesquisa de Bioética.
Professor de línguas: Inglês, Alemão e Português como segunda língua para Estudantes Erasmus.
Especialidades: Bioética: narrativa e ética; Ética em Pesquisa e Integridade em Pesquisa
O ENCONTRO TERAPÊUTICO
O que o médico disse
Ele disse não parece bom
ele disse de facto parece mau, verdadeiramente mau
ele disse eu contei trinta e dois deles num pulmão antes de desistir contá–los
eu disse fico feliz eu não quereria saber se houvesse mais do que esses
ele disse você é um homem religioso ajoelha–se no bosque e permite–se pedir ajuda quando se
aproxima de uma queda de água
enquanto a névoa sopra contra o seu rosto e braços
você pára e pede por compreensão
nesses momentos
eu disse ainda não mas pretendo começar hoje
ele disse lamento muito ele disse
eu queria ter outras notícias para lhe dar
eu disse amén e ele disse alguma outra coisa
que eu não entendi e não sabendo mais o que fazer
e não querendo que ele tivesse que repetir
e eu tivesse de digerir tudo aquilo
eu só olhei para ele
por um minuto e ele olhou–me de volta foi então que
eu saltei e apertei a mão desse homem que tinha acabado de me dar
algo que ninguém no mundo nunca me tinha dado
eu posso até ter–lhe agradecido por força do hábito
(Raymond Carver. 1996. “What the Doctor Said”. All of Us: Collected Poems. Harvill Press,
tradução nossa)
O que o medico diz inscreve–se nas palavras, nos silêncios, nos gestos e expressões do rosto e do corpo. O que o doente e o médico escutam é sempre um todo maior do que as partes, que ultrapassa o registo verbal e integra experiências passadas, horizontes de conhecimento, sabedoria, razão e emoção, medos e dúvidas. Na Arte e nos Cuidados de Saúde a interpretação destaca–se em primeiro plano: a realidade da doença é sempre objeto de interpretação, quer seja o trabalho interpretativo realizado por um cientista, quer seja a leitura da dor, do sofrimento, da doença comunicada por quem sofre a quem cuida. Num e noutro caso, à interpretação expressa segue–se a interpretação de quem lê, de quem vê, de quem cuida.
O paradigma da nova medicina (medicina baseada na prova) é definido como “o uso consciente e criterioso da melhor evidência da investigação clínica, incluindo técnicas da ciência, engenharia e estatística – como a meta análise da literatura científica, análise risco–benefício e ensaios clínicos controlados e aleatorizados”. Este modelo, por si só, dificilmente poderá integrar a dimensão intersubjetiva do cuidado terapêutico, carecendo portanto de resposta para as necessidades individuais das pessoas que adoecem e dos profissionais de saúde. Como nos recorda Eric Cassel, cada um de nós chega à sua doença de um modo próprio e a doença passa a ser parte da nossa história, passando a ocupar um lugar na narrativa das nossas vidas. Para conhecer a doença, temos de conhecer algo sobre a pessoa.
Para conhecermos a pessoa, temos de conhecer algo sobre a sua história. (E. Cassel. 1991. The Nature of suffering and the goals of medicine. Oxford: O.U.P, 156, tradução nossa).
Para que os cuidados sejam efetivamente centrados na pessoa, precisam de estar ancorados em três valores/princípios: respeito, responsabilidade e reconhecimento da vulnerabilidade. Estes princípios traduzem–se, no contexto da prática clínica, pela capacidade de dar espaço ao Ser e ao Estar e não apenas ao Fazer e ao Saber, incluindo:
- Fazer perguntas abertas sobre o que verdadeiramente importa a quem experiencia a doença;
- Partilhar informação clara para que a tomada de decisão seja efetivamente construída;
- Integrar no espaço dos cuidados de saúde a vida que flui fora dos muros do hospital: a comunidade, o grupo social, a família, o trabalho, que são parte essencial do mundo da história da pessoa com doença (não são acessórios);
- Articular a razão e a emoção na comunicação e na tomada de decisão clínica, assumindo que a racionalidade pura não cuida da pessoa com doença, nem do profissional de saúde;
- Cuidar das palavras ditas, interditas, silenciadas, sabendo que a linguagem molda a forma como agimos e pode ser ponte na construção da relação terapêutica ou, pelo contrário, ser fonte de erosão dessa mesma relação;
- Reconhecer as nossa forças e as nossas limitações, pedindo apoio a quem nos pode ajudar a comunicar melhor e a deliberar de modo mais prudente.
Numa palavra: PARAR. Parar para reparar, parar para refletir sobre o sentido do cuidar e sobre quem somos quando cuidamos e como cuidamos.
Eis o desafio para este ano que agora começa (2022) e para as próximas décadas, que irão ser dominadas pelas novas tecnologias e pela substituição do toque e da relação pela
informação alojada no mundo digital: saber escutar com humildade narrativa, reconhecendo que a história que nos é contada não é propriedade nossa e que só conseguimos dar resposta ao sofrimento do Outro, se encontrarmos uma porta de entrada para o mundo sempre misterioso em que o Outro habita. Só então o encontro pode verdadeiramente acontecer.